uQem explica são Mary del Priori e Renato Venâncio, autores de recente, e ótimo, livro sobre a história da vida rural no país. Na década de 1850, o governo imperial programa uma série de medidas modernizadoras da sociedade. Na agenda educacional, proposta pela família real desde a sua chegada ao Brasil, o ensino rural se destacava. Mas demorou a sair do papel.
Abolida a escravidão e proclamada a República, aí, sim, ganham fôlego as novas idéias. Em 1901, começa a funcionar a Esalq/USP, espécie de meca da agronomia nacional, situada em Piracicaba (SP). Antes dela, Pelotas, no Rio Grande do Sul, e Cruz das Almas, na Bahia, já iniciavam seus cursos de Agronomia. Em 1908 surge o curso de Lavras (MG); em 1910, no Rio de Janeiro; em 1918 no Ceará; em 1920, o de Viçosa (MG).
O primeiro grande dilema enfrentado pela nova profissão residia na diversificação da agricultura. Naquele período, o combate à monocultura do café polarizava as discussões. Na verdade, havia um componente político, capitaneado pelos cariocas, em face do predomínio da economia agrária paulista.
A grande crise de 1929-1930 resolveu, por linhas tortas, a pendenga. A oligarquia cafeeira se arrebentou, disponibilizando terra e recursos para alternativas de produção, como o algodão. As cidades iniciam sua forte expansão populacional, demandando alimentos. Décadas de progresso se verificam entre 1940 e 1970.
Forma-se a rede oficial de assistência técnica e extensão rural, as Emateres, espalhadas nos Estados. Em São Paulo surgem as “Casas da Lavoura”. O agrônomo Fernando Costa, ministro da Agricultura, impulsiona a pesquisa agronômica e a mecanização agrícola. A agronomia vive anos de ouro. Surgem os grandes manuais da profissão.
Depois, com a industrialização, já nos anos 1970, chega momento diverso. O avanço da tecnologia exigia a especialização. Os cursos perdem seu ecletismo. Pulveriza-se a profissão, surgem novos ramos: zootecnia, tecnologia de alimentos, engenharia florestal. O mercado demanda mão-de-obra singular.
A função social do agrônomo, como promotor do desenvolvimento, cede lugar na expansão do capitalismo agrário. Empresas privadas invadem o setor educacional, rebaixando o nível de ensino. O problema estava na formação prática dos alunos: sem laboratórios adequados nem áreas experimentais, formam-se profissionais capengas.
Virou o século, tudo é passado. Hoje, existem 137 Faculdades de Agronomia pelo País afora, lançando cerca de 3.850 novos profissionais por ano no mercado de trabalho. Um verdadeiro exército de mão-de-obra qualificada no meio rural. Qual bagagem leva para a trincheira?
Thomas Kuhn, em sua famosa teoria das revoluções científicas, assinala o papel conservador dos manuais. Especialmente nas ciências naturais, os grandes livros organizam o conhecimento passado, mas nada apontam para a frente. Quando a ciência evoluía devagar, o prejuízo era pequeno. Todavia, com a chegada, nos anos 1970, da “revolução verde”, velhos conceitos e práticas de agricultura foram rapidamente superados.
Na seqüência, a informática, a engenharia genética e a biotecnologia explodem a fronteira do conhecimento. O desafio do ensino universitário consiste em acompanhar a velocidade do progresso científico. Os manuais rapidamente se fossilizam.
Nesse embaraço mora o grande perigo da agronomia. É cabível perguntar: as Faculdades de Ciências Agrárias estão preparando bem os alunos para os novos tempos? Ou eles se formam estudando velhos manuais, desconectados da realidade?
Nem tanto ao céu nem tanto ao mar. Em qualquer profissão se discute semelhante dilema, entre treinar gente conectada ao mercado ou preparar profissionais visionários. Empregados ou empreendedores? Ambos?
A superação desse dilema pressupõe compreender que o novo paradigma da agropecuária não mais se centra na tecnologia. Produzir, francamente, está ficando tarefa fácil, guardadas as devidas proporções. Difícil, mesmo, é garantir renda ao produtor rural. O mercado, seletivo e rigoroso, massacra o agricultor. Mesmo com tanta tecnologia, está difícil pagar o custo da produção.
Na mitologia romana, Ceres é a deusa das plantas. Simboliza a fertilidade do campo. Se quiser continuar a venerá-la, a agronomia precisa dourá-la com as tintas do marketing rural. Aqui está a novidade, melhor dizendo, o passaporte para o futuro.
Mais que saber plantar ou criar, os agricultores devem gerenciar seu negócio de forma empreendedora, competitiva. E a chave está na certificação da produção, no aprendizado das boas práticas agrícolas, na agricultura sustentável. Essa agenda, concomitante com a inovação tecnológica, necessita contaminar o ensino das ciências agrárias. Com a palavra, a universidade.
Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996-98).
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